RIDÍCULO

Somos narcisistas. Não sei muito bem como começar esse texto que não seja desse jeito. Até os mais empáticos, pelo menos os que dizem ser, são corroídos pela inveja digna de Iago de Shakespeare e esse conto é excelente para os “empáticos” e para os empáticos.

(Spoilers de O Sonho de um Homem Ridículo)

Escrito em 1877 pelo russo Fiódor Dostoiéviski (1821-1881), em plena Guerra Russo-Turca (1877-1878) onde a Rússia com o seu eterno sonho de ter acesso ao Mar Mediterrâneo, mas eram impedidos pelo Império Otomano que dominavam a região dos Balcãs e seus países satélites que eram maioria ortodoxa, o que ofendia bastante a civilização que se chamava de Terceira Roma e Protetora dos Povos Eslavos. A guerra terminou pela vitória russa e mais de 150 mil mortos, além de feridos, doentes e êxodos que destruíram a conturbada região dos Balcãs.

A história, um homem que procura o suicídio e dorme, caminha entre fantasia e realidade e busca exprimir o sentimento de perdição e devastação que atingia fortemente os anos finais do autor que procurou na religião ortodoxa uma maneira de aliviar as sensações pessimistas que afetavam a pele e a pena de Dostoiéviski.

I

O narrador que se apelidou de Ridículo conta-nos um pouco da sua história e do seu convívio social. Todos o acham ridículo, pois ele conhece a verdade, seja lá o que isso seja, mas ele, somente ele, conhece a Verdade! E ele sente uma profunda dor de sabê-la, pois somente ele conhece e quando abre a boca para falar a tal Verdade todos o tratam como um Homem Ridículo.

Desde a infância sentia algo no coração que apontava que era especial pois sabia a Verdade. Cada ano que passava da vida quanto mais envelhecia e estudava mais tinha certeza de que sabia da Verdade, porém, ninguém se importava e ria do ridículo que era, mal sabiam todos que o Ridículo sabia que era ridículo e isso aumentou o orgulho do pobre solitário ao ponto de comprar um revólver para no momento que dissesse a alguém que era um ridículo estouraria o próprio crânio na mesma noite.

Anos se passaram e o Ridículo alimentou uma personalidade melancólica, a apatia em relação ao mundo cresceu em seu mundo. Tanto faz, essa é a palavra que define o personagem. Por que se importar com o mundo? Afinal, quando você morrer, se não houver um além, acabou? Não estou correto? Você é livre para dançar no vazio com a poeira do fim entre os dentes sorridentes como imaginou o prussiano Friedrich Nietzsche (1844-1900), mas parece que Ridículo não sorriu ou dançou diante do fim.

“Senti de repente que para mim dava no mesmo que existisse um mundo ou que nada houvesse em lugar nenhum. Passei a perceber e a sentir com todo o meu ser que diante de mim não havia nada.”

As coisas mudam para o nosso depressivo protagonista no dia três de novembro durante uma tenebrosa noite aonde voltava da casa de um, talvez, amigo onde expressou a sua indiferença a tudo e a todos com um “tanto faz”. Tinha acabado de chover, o céu noturno se revela a ele com uma estrela solitária e brilhante, fica uns poucos minutos devaneando encarando céu, nesse momento decidiu se matar. O revólver tinha sido comprado para esse propósito e para isso seria usado, enrolou demais o suicídio, seria hoje.

Por um breve momento uma menina agarra o seu braço e o balança fortemente arrancando-o dos desejos suicidas com um grito desesperado por ajuda. Ela, tremendo e com os olhos inchados pelo choro, pede socorro pela sua mãe e aperta a manga do casaco de Ridículo que se enfurece com o pânico da criança e a enxota. Por que deveria se importar com ela se, na sua mente, tudo dava no mesmo? Por que se importar com algo?

A criança, imagino a mente entrelaçada com o terror da morte da mãe, roga ao Ridículo por ajuda, mas grita e a empurra. A suplicante rapidamente corre para outro homem que passava perto e pede por ajuda enquanto o nosso suicida caminha para a sua casa para realizar o seu ato.

Em seu quarto se senta, conta-nos sobre o vizinho, um capitão reformado, barulhento que adora jogar cartas com os amigos mesmo que todas as noites termine em uma troca de socos violenta. A senhoria, uma velhinha, tinha medo do capitão junto com os outros inquilinos que preferem ignorar a existência do nêmesis a confrontá-lo. O quarto, cheio de livros, serve apenas para ter um lugar a noite, mas, jamais repousar já que faz um ano que o protagonista não dorme de forma tranquila.
Se senta na poltrona, saca a arma em silêncio.
Perguntou-se: É assim?
Respondeu com convicção: É assim.
O silêncio toma lugar.
A menina o salvou.

II

Por que a menina o salvou?
Porque ele sentiu pena.
Para ele, naquele misero instante, nada dava no mesmo. Você só sente piedade daquilo que você se importa e considera humano, daquilo que tem valor no mundo. O seu niilismo não suportou a virtude da piedade.

Mas porque não foi tomado pelo poder (vontade, potência) e apiedou-se da menina?
Porque para o suicida o mundo é indiferente, não cruel ou aterrador, mas indiferente. Pouco importa o que se tente fazer, pois nada resiste ao Universo como pensou o Cosmicismo de Lovecraft (1890-1937), a Morte de Schopenhauer (1788-1860) ou Deus de Kierkegaard (1813-1855). Se ele se matasse agora ou depois que diferença faria? Mesmo sabendo disso, ele sentiu pena.

A piedade o fez recuar, seu coração se acelerou, não conseguia compreender o exatamente o que tinha acontecido, mas foi o suficiente para o fazer voltar a vida e se sentir nervoso.

“Parecia-me evidente que, se eu sou um homem e não um nada, e enquanto não me transformei num nada, então estou vivo, e consequentemente posso sofrer, me zangar ou sentir vergonha dos meus atos. (...) Parecia-me evidente que a vida e o mundo agora como que dependiam de mim. (...)”

Apenas pedras são felizes. Tudo que é vivo já nasce a infelicidade, o que você fará com isso depende de você mesmo que sete bilhões de pessoas querendo ser feliz não me pareça a coisa mais saudável.

De um momento de calma o protagonista adormece e somos lançados a segunda parte do conto, o sonho de um homem ridículo.

III

Um sonho estranho acontece. Ele saca a arma e dispara não contra o crânio, mas contra o coração tentando, inconscientemente, matar suas emoções, a sua culpa, o medo, a felicidade, tudo para que volte a ser o nada.

Lançado contra um caixão e enterrado, começa a se perguntar se há um pós-morte ou se era aquele o paraíso. O silêncio o perseguiu, mas foi destruído por uma criatura escura que o arranca de dentro do túmulo e o leva para o espaço, a noite mais escura com as estrelas mais luminosas.

O rapaz começa a fazer perguntas a criatura que, mesmo sem face, sentia que era humano e mesmo sem boca o respondia. A viagem é longa, mas rápida e avistam o Sol que não é o nosso Sol, depois avistam a Terra que não é a nossa Terra. A criatura negra o joga nas praias dessa Terra.

“Como é possível semelhante repetição, e para quê? Eu amo, eu só posso amar aquela Terra que eu deixei, onde ficaram os respingos do meu sangue, quando eu, ingrato, com um tiro no meu coração, extingui a minha vida. Mas jamais, jamais deixei de amar aquela Terra, e mesmo naquela noite, ao me separar dela, talvez a amasse com mais tormento do que nunca. Existe tormento nessa Nova Terra? Na nossa Terra não podemos amar de verdade senão com o tormento e só pelo tormento! De outro modo não sabemos amar e não conhecemos amor diferente. Eu quero o tormento para poder amar. Eu tenho desejo, eu tenho sede, neste exato instante, de beijar, banhado em lágrimas, somente aquela Terra que deixei, e não quero, não admito a vida em nenhuma outra!”

Ele é recebido pelos habitantes daquela Nova Terra. Lindos como o Sol e inocentes como crianças, nunca conheceram a infelicidade e por isso não precisam falar. Não há ciência, pois não há desgraça para ser evitada. Não há fome, pois compreendem as palavras da natureza e das suas criaturas e até as estrelas foram compreendidas. Possuíam o amor sem a cobiça ou o egoísmo, amor é infinito. A morte existia, mas não era temida, era abraçada em um sono eterno.

Este é o paraíso que jamais foi tocado pelo pecado original que condenou os humanos a caminharem na própria desgraça como pensou os cristãos. Adão e Eva nunca escolheram a serpente, decidiram permanecer junto a Deus e estes que o protagonista encontrou são seus descendentes felizes. Queriam arrancar a tristeza e a angústia de Ridículo, mas não conseguiram. Ouviam suas perguntas e suas aflições e sempre se padeciam do caos que era a sua alma, mas jamais o entenderam...

O fato é que ele os condenou!

IV

De um momento para outro milênios se passaram e através dele, a serpente de Lucífer, os homens dessa utopia começaram a mentir. Como uma peste que salta de pessoa a pessoa a mentira se espalhou e o nosso protagonista percebeu o que tinha acontecido tentavam de todas as maneiras reverter a doença hereditária que se espalhava mais rápido que a sua culpa. Em pouco tempo se tornaram voluptuosos, o ciúme acompanhou-os e em seguida crueldade e ocorreu o primeiro assassinato.

Eles começaram a se dividir, alianças surgiram umas contra as outras. Acusações eram sentenciadas de um lado ao outro. Conheceram a vergonha e da vergonha que sentiam deram origem a virtude. Honra e patriotismo se alinharam diante das bandeiras que se erigiam. Os animais fugiram para as florestas que começaram a parar de conversar com os homens e as estrelas fizeram votos de silêncio.

Começaram as lutas pela separação, independência, pela individualidade, por aquilo que é meu e pelo teu. Novas línguas surgiram. Conheceram a dor e tomaram amor pela dor, tinham gosto pelo tormento e apontaram que a verdade só é conhecida pelo tormento então no meio deles surgiu a ciência. Os maus se tornaram criminosos surgiu a lei e a justiça que foi acompanhada de mãos dadas com a guilhotina.

Esqueceram do seu passado inocente, se tornou mito, lenda. Endeusaram o próprio desejo e a própria vontade, templos foram erguidos, mas a culpa ainda persiste no interior desses seres desgraçados.

“E daí que sejamos mentirosos, maus e injustos, sabemos disso e deploramos isso, e nos afligimos por isso a nós mesmo, e nos torturamos e nos castigamos mais até, talvez, do que aquele juiz misericordioso que nos julgará e cujo nome não sabemos. Mas temos a ciência, e por meio dela encontraremos de novo a verdade, mas dessa vez a usaremos conscientemente, o entendimento é superior ao sentimento, a consciência da vida é superior à vida. A ciência nos dará a sabedoria, a sabedoria revelará as leis, e o conhecimento das leis da felicidade é superior à felicidade.”

A escravidão surgiu logo que eles perceberam as diferenças entre uns e outros. Os justos surgiram e apontavam, com os olhos lacrimejados, a perda da dignidade, da harmonia, mas eram ridicularizados e alguns enfrentaram os sabres. Pessoas começaram a surgir e apostar em ideias de que todos poderiam se unir novamente, cada ideologia a sua maneira, e guerras começaram por esse ideal de união porque se o outro não entende a minha união é uma ameaça a União!

No rosto dos homens dessa Terra surgiram os traços de sofrimento e o protagonista passou a amá-los ainda mais do que antes e amar a Terra que foi profanada enquanto chorava pelas ruas pavimentadas remoendo a culpa. Pediu, implorou, que o crucificassem, terminasse com a vida porque tinha sido ele que trouxera todo aquele pecado.

Os humanos o trataram como Homem Ridículo.
E ele acorda, aspirando a vida, com a seguinte frase que encerra o conto.
“’A consciência da vida é superior à vida, o conhecimento das leis da felicidade é superior a felicidade’ – é contra isso que é precioso lutar! E é o que vou fazer!”
Ele encontra a menininha.

V

Hobbes (1588-1679) teria adorado ler esse conto, Homo homini lúpus, o Homem é o lobo do próprio homem. O protagonista pode ter sido a praga, mas o mal parte dos homens contra os próprios homens. Se Nietzsche chegasse a ler o texto teria concordado com o russo, é através do mal que os humanos progridem mesmo que extraiamos o máximo do bem. É somente no perigo que se revela a coragem, nunca o contrário.

Então, depois de tudo isso, caso tenha tido a paciência de ler tudo, o que isso tem a ver com empatia e o narcisismo?
Ridículo quando desperta, agora como um novo homem, corre atrás da menina buscando enfrentar a máxima dita pelos seus antigos conterrâneos, mas, afinal, o que quer dizer Dostoiéviski?

Vou ter que usar de um filme para poder continuar o argumento. Freud – Além da Alma (1962) mesmo com o nome meio brega tem uma cena com uma carga de significados imensa. O professor de Freud (Montgomery Cliff), Theodore Meynert (Eric Portman), durante uma conversa com o futuro pai da psicanálise usa como metáfora escorpiões para afastar o rapaz desse suposto inconsciente. Escorpiões dentro do escuro de uma caixa não atacam a não ser que se jogue luz sobre eles, porém, ao final do filme em uma nova conversa, Meynert fala a Freud para esquecer tudo que disse e “nos trair”.

Os escorpiões só atacam quando jogados luz sobre eles, não sei se na realidade é assim, mas não muda a elegância da metáfora para o inconsciente e os pesadelos que deve ter através do obscuro véu. Dostoiéviski nos fala para arrancar esse véu, falar a todos esses malditos acordos que ninguém diz, mas todos seguem!

Como você quer fazer o bem ou diz querer fazê-lo se nunca olhou para o mal interior?

O amaldiçoado e torpe retrato de Dorian Gray que você esconde dentro das profundezas da sua casa interior?

Como você quer enfrentar as sombras do mundo se não consegue enfrentar as suas sombras?

Se você não consegue perceber que é a serpente de Lúcifer que faz o mundo ser pior como quer acertar a cabeça do réptil venenoso?

Tantas palavras são ditas para salvar a Humanidade, com H maiúsculo, do apaixonado pai do positivismo Comte (1798-1857), mas o ódio para o outro reside no interior de muitos que são apenas movidos pela inveja escondida por trás de sorrisos que faria o próprio Iago parecer um santo.

Você, para o assombro de muitos, é diretamente responsável pelas desgraças no mundo.

Você deve reconhecer a responsabilidade da sua própria maldade e não procurar culpar o capitalismo, a Igreja ou o gênero oposto pelas mazelas.

Agora, para os dotados de empatia, tenho péssimas notícias. Uma vida virtuosa não é uma vida feliz ou menos infeliz é uma vida miserável, talvez mais do que esteja imaginando.

Dizemos que são boas virtudes não aquelas que causam o bem ao virtuoso e sim que causa o bem a todos, a sociedade. Não conheço um herói egoísta, todo herói é dotado do auto sacrifício. Ter uma virtude não te faz superior e sim vítima, o caridoso é lembrado pela sua função e não por quem é, o bom ouvinte não fala. A virtude é recordada como instrumento para a felicidade alheia jamais a sua se você fica feliz pela felicidade do outro é por ter exercido o seu poder sobre ela, pois queremos aumentar o nosso poder ou mostrar a aqueles que nos seguem a vantagem de permanecer conosco porque se uma adversidade aparecer o ajudado se juntará a nós para enfrentar o problema, assim se espera, já que nem todos são dotados de confiança.

Sabendo disso você ainda pretende manter a sua empatia ou qualquer outra virtude, te parabenizo e desejo que continue. Pense a virtude como andar, treine até que a sua vida seja a virtude como pensou Aristóteles a milênios atrás e saiba que será um Homem Ridículo para todos.


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