Gonçalo Cunha de Sá's profile

Roadtrip: Portugal - Croatia

Viajar é diversificar o conhecimento e ter a experiência do que queremos saber. 
Quando viajo não sei o que vou encontrar, tão pouco vou à procura.
Vivo o ar que me alimenta, encho-me de paisagem e de pessoas, vivo o passarinho que me assobia, o sol que me bronzeia, a chuva que me lava a alma, o rio que me ultrapassa sempre sempre sempre. 
Viajar ensina-me a estar onde estou.

Gonçalo Cunha de Sá



Um tipo chato. 
Assim é um fotografo em viagem, um tipo chato. Pára aqui e ali, arrasta os pés pelas ruas e demora-se a namorar pessoas e paisagens. Mas deixemo-nos de fantasias, e insisto desde já na explicação, muitas vezes discutida, de que o fotografo vê a viagem através do buraquinho da máquina e perde tudo o que o rodeia. De todo! A máquina fotográfica pode dar até, de facto, um certo distanciamento, o que por vezes é uma grande vantagem, da mesma forma que pode enriquecer a relação com o objecto fotografado. Olhar para uma pessoa e tirar-lhe um retrato obriga a uma maior intimidade pois implica uma troca de olhares de entendimento e reconhecimento. Há um dialogo visual que de outra forma passaria despercebido ou não existiria sequer. Digo, pois, que a máquina fotográfica potencia uma viagem mais intensa e mais rica, presta uma participação activa e de forma alguma nos faz perder a intensidade dos cheiros, dos sons, o recorte da paisagem que fica um pouco mais à direita ou à esquerda do ângulo que escolhemos. 
Mas ao que interessa, a viagem!
Há sempre um encantamento, um jogo de sedução, um querer experimentar e ir mais longe quando se decide viajar, se escolhe o destino e o meio de locomoção. A certa altura toda a energia do nosso corpo se volta para essa viagem que faz agora parte dos nossos sonhos, medos e desejos. Passa a existir como que uma obrigação na sua realização. Assim se passou comigo, mais uma vez.
O destino escolhido, Croácia. Meio de transporte, mota.

A aventura:
Portugal – Espanha. Apanho a A6 como que para fugir mais depressa de Portugal, mas dou comigo a afrouxar o acelerador mais amiúde do que gostaria. O olhar namora as vastas planícies alentejanas picotadas por sobreiros, grandes extensões de verdes (claros, escuros e partes até a virar para o acastanhado) depois dos meses de chuva que se fizeram sentir, as cegonhas migratórias que acampam nas torres metálicas à beira da estrada, o contraste vivo do ocre dos telhados... Quero parar para registar o meu enamoramento mas faço por resistir à tentação. Ainda não é altura de pegar na máquina fotográfica se quero chegar ao meu destino! 
A partida leva o desejo de conquista e o meu objectivo cintila-me no pensamento: Dubrovnik, na cauda da costa da Dalmácia.
21h30 paro para jantar e dormir no hotel Alonso de Monroy, na Autovia de Madrid, a cerca de 180km da capital Espanhola. Um pequeno hotel de estrada para viajantes vencidos pelo cansaço, como eu. Uma bomba de gasolina e um cafezeco para enganar a fome e ouvir barulho. Os guardanapos espalhados pelo chão como tapetes gastos enfeitam o café e dão-lhe vida, a série CSI corre na televisão, “doblado”, duas caixas de roleta cantarolam a bom som e ao mesmo tempo músicas diferentes. A empregada de balcão, dirigindo-se a mim em tom zombeteiro pergunta-me “donde lo as metido?”, apontando para o meu polegar entrapado, envolto numa ligadura suja e gasta – conduzo com uma tala no polegar esquerdo depois de ter deslocado o dedo duas semanas antes da partida. Os casos “pernoitados” dos viajantes nascem assim, mas não esta noite.
***
Uma noite mal dormida, com sonhos antigos e namoradas do antigamente. Um sonho repetido. Faço-me à estrada ainda de manhã cedo. O ar, frio, corta sem perdão. À minha esquerda os picos gelados das montanhas parecem iluminar a estrada como candeeiros. A estrada ceifa grandes extensões de verde e lilás. Algumas paredes abandonadas picam a paisagem. Manadas de vacas e fartos rebanhos de ovelhas parecem nem dar pela minha passagem, certamente de tão habituadas que estão ao barulho dos carros e camiões. 
Paro para almoçar no Buffalo Grill, guiado pelo saudosismo de uma viagem antiga. A estrada que me leva a Madrid, a A5, até ao Km 70 é uma estrada pensada para viajantes solitários de longo curso, apinhada de motéis e clubs de pirilampo vermelho onde facilmente se encontra companhia para passar a noite ou parte dela. Dois portugueses, na mesa ao lado, trocam e enobrecem as suas histórias experimentadas nessas casas. A pronúncia denuncia a origem. Que cuidado se tem de ter, nunca se sabe quem está sentado ao nosso lado!
A entrada em Madrid feita pela A5 é um choque paisagístico angustiante. Um rol de armazéns vários, cores sujas, metal, paredes e sinais de trânsito riscados com grafites, o ar negro, carregado de escapes e trânsito intenso que se desenrola vagaroso. 
Quero chegar depressa a Barcelona onde tenciono ficar duas noites. Sigo viagem com poucas paragens, algum trânsito e muito vento lateral. Este percurso está a custar-me bastante e sinto-me cansado. Distraio-me com os restos de pedras desabitadas aqui e acolá nos cimos dos montes, alguns dos quais seguram ainda meia dúzia de telhas gastas e deixam perceber o rasgo de uma janela ou de uma porta. O vento ganha volume e as pás dos moinhos metálicos giram incansáveis no cimo dos montes, mas felizmente não tão forte como o vento que atravessei de Algeciras para Tarifa onde a mota parecia querer largar a estrada e rolar por cima das nuvens, numa outra viagem mais antiga.
A 200 kilómetros de Barcelona um camião vinha a largar patos na estrada. Um folclore de penas sem corpo esvoaçavam em bandos intermináveis, mais terrível e real que o filme “Os pássaros” de Alfred Hitchcock. Quando é que vem o pato? – pensava enquanto as penas enchiam a estrada como nevoeiro.  
Finalmente chego a Barcelona onde durante três dias corri todos os bares, restaurantes, cafés e discotecas. Desta vez aproveitei Barcelona para viver ao estilo jornalístico americano de Hunter S. Thomson...
Ao quarto dia depois de almoço, ainda bastante cansado, despeço-me dos meus amigos e rumo direito a Montpellier.
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Montpellier. A origem do nome vem de “Mont pelé” ou monte despido por causa da sua falta de vegetação. Montpellier é a capital da região Languedoc-Roussillon, no sul de França. A partir do século XIX cresceu como pólo industrial, mas a cidade não perdeu o seu charme, guardando uma das universidades mais antigas do mundo, datada de 1160, o primeiro jardim botânico Francês (1563), a catedral Saint-Pierre datada do século XIV, o “Promenade du Peyrou” construído por Luís XIV onde veio a crescer o centro histórico repleto de ruas novecentistas e muitas esplanadas na margem do rio Lez. No verão, estas esplanadas enchem-se de músicos “volantes”. Assisti, há uns anos, a um grupo de jovens músicos carregar um piano de ¾ de cauda escadaria acima e tocar nestas esplanadas para os turistas, a quem depois pediam dinheiro.
Acordei a sentir-me sozinho, sentimento que me tem acompanhado nestes últimos tempos. Pego no meu Moleskine e rascunho pensamentos ao estilo “diário”, pensamentos que ajudam a situar-me e a saber mais tarde o que cada local por onde passei me fez sentir. A romântica solidão é esquecida quando me sento na mota e experimento a liberdade de visitar os locais sem pressas, sem prisões ou compromissos. Passeio-me no centro histórico, na Place de la Comédie, visito a Porte du Peyrou, a piscina Olímpica, sento-me numa esplanada a tomar um capuccino, assisto a uma demonstração de btt, visito o comércio com as suas bancas de frutas, legumes, flores e velharias.
No final da manhã aponto para St. Tropez, com uma paragem curta em Marseille. O tempo, infelizmente, não está para fotografias pelo que a paragem em Marseille se mostra mais curta do que o previsto. 
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Saint-Tropez. Um pequeno porto que apaixonou escritores, artistas e actores famosos nos anos 50. O mito instalou-se para ficar quando Brigitte Bardot, nos anos 60, também se rendeu aos encantos daquele pequeno porto. A partir de então até aos nossos dias, St. Trop é o local de férias preferido pelo jet set internacional e tudo em St. Trop é famoso. Os turistas amontoam-se para serem vistos e verem os yatchs atracados no porto, que concorrem em tamanho, linhas singulares ou até pela tripulação mais vistosa. As festas nestes yatchs são espampanantes. E com todo este espalhafato de festas e exibicionismo, no porto de St. Trop vivem-se, nos meses de Verão, alguns dos pecados mortais... A beleza natural do pequeno porto só voltará a emergir depois da época alta do turismo terminar. 
Maio é um bom mês para visitar Saint-Tropez, passear descansadamente pelo pequeno porto, pela citadela, conhecer a Rue Gambetta e a Place des Ormeau, a igreja do séc. XVIII e a torre do sino, dar um salto às pequenas vilas de Gassin e de Ramatuelle, aos Moulins de Paillas, visitar as praias de Pampelonne e gozar a vista panorâmica, que é o que faço.
Como a Graça Vilhena escreveu no prefácio de “A maravilhosa viagem de Nils Holgersson pela Suécia” de Selma Lagerlof, “há viagens de aventuras, viagens de estudo, viagens de negócios. E outras ainda. Há viagens felizes e infelizes. Viagens em que se enriquece, viagens em que se morre de saudade. E há esta.” Esta, minha, leva um pouco de procura interior, e todo o viajante que procura e pergunta, recebe. As respostas vêm das mais variadas formas: quando se namora uma paisagem, quando se visita um museu ou uma exposição ou até mesmo quando se observa as pessoas com quem nos cruzamos, quando convivemos com pessoas com estilos de vida e culturas diferentes, quando tentamos perceber os seus problemas e partilhamos também as nossas preocupações.
Instalei-me num parque de campismo muito simpático, mesmo em cima da praia, a cerca de 5km da vila. Contam-se pelos dedos os campistas nesta altura do ano (início de Maio) e o silêncio toma conta do parque, propiciando a calma interior e a reflexão. 
Saio para jantar onde acabo por me deixar ficar a escrever e a beber umas cervejas. Regresso animado ao parque para me recolher no silêncio da noite. O céu está escuro, anunciando mau tempo. Como viajante devia ter percebido. Talvez as cervejas não tenham ajudado a abrir os sentidos.
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